A interposição fraudulenta de terceiros nas operações de comércio exterior é um dos maiores – senão o maior, medo dos empresários do setor.
Trata-se de uma irregularidade que ocorre quando uma empresa de fachada (interposta) oculta a empresa efetivamente interessada (real interveniente) em uma ou mais operações de comércio exterior. Isso para que esta última (a real interveniente) esta não seja objeto de fiscalização aduaneira.
O ordenamento jurídico brasileiro contempla duas modalidades de interposição: a presumida e a comprovada. Na comprovada, o real interveniente é identificado pelo fisco. Na presumida, o real interveniente não é identificado, porém, o fisco comprova que a empresa interposta não tinha capacidade financeira para realizar as operações e/ou que os recursos utilizados não tinham origem.
Nas duas modalidades uma sanção é comum: o perdimento da carga objeto da operação dita fraudulenta que, poderá ser convertido em multa de valor equivalente no caso da carga já tiver sido consumida/revendida ou não for localizada.
Na interposição fraudulenta presumida, porém, há outra sanção: a suspensão cautelar e posterior declaração de inaptidão de CNPJ da empresa autuada.
Para muitos empresários e advogados que militam no direito aduaneiro esta última penalidade é mais grave e danosa do que o perdimento da carga.
Isso porque, ainda que a perda da carga (convertida, ou não, em multa equivalente) impacte nas finanças da empresa, a declaração de inaptidão do CNPJ equivale a uma sentença de morte, já que sem CNPJ a pessoa jurídica fica impedida de realizar qualquer operação, especialmente compra e venda de mercadorias.
Em razão disso há muito se discute a legalidade desta sanção. No que tange à suspensão cautelar do CNPJ, a jurisprudência já se sedimentou no sentido de sua ilegalidade, posto que cassar o CNPJ antes mesmo de ser dada a empresa chance de defesa em processo administrativo que trata da inaptidão do CNPJ fere o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
Para o advogado especialista em direito tributário e aduaneiro João Luiz Fregonazzi, a ilegalidade não é só essa: “O processo que apura o efetivo cometimento de interposição fraudulenta presumida tramita separadamente do processo que discute a inaptidão do CNPJ. Assim, muitas vezes conseguíamos sustar a suspensão cautelar do CNPJ. Porém, como o processo de inaptidão era concluído de forma mais célere, a pena definitiva, que é a declaração de inaptidão, era aplicada antes mesmo de ser confirmado que a empresa efetivamente havia cometido a infração”.
Segundo o advogado explicou, se a declaração de inaptidão é uma consequência da interposição fraudulenta presumida, logicamente a sanção só poderia ser aplicada depois que todos os recursos administrativos relacionados com a infração em si fossem julgados.
O Dr. João ilustrou o ponto da seguinte forma: “Caso um cidadão brasileiro seja acusado de um crime, ele é obrigado a iniciar o cumprimento da pena antes de transitada em julgado a sentença condenatória até mesmo em 1ª instância? Consideram-se autônomos o processo penal e a execução penal? Não. A execução da pena é consequência de uma decisão condenatória irrecorrível”.
Para ele, o próprio processo de apuração de cometimento da infração reforça o absurdo da declaração antecipada de inaptidão do CNPJ: “O crédito referente à multa equivalente fica com a exigibilidade suspensa até decisão final dos autos, quando se confirma a infração realmente foi cometida. Mas a inaptidão do CNPJ não. É uma abominação jurídica”.
Foi com base nesses e outros argumentos que, no bojo do processo 5133922-48.2021.4.02.5101, o magistrado determinou que a Receita Federal se abstivesse de declarar inapto o CNPJ da empresa demandante até que finalizados os processos administrativos que apuram a prática de interposição fraudulenta presumida:
Assim, nos termos da fundamentação, CONCEDO A SEGURANÇA, com base no art. 487, I, do CPC, julgando extinto o feito com resolução do mérito, para determinar à Digna Autoridade impetrada que suspenda qualquer aplicação sumária da declaração de inaptidão do CNPJ das Impetrantes, até o trânsito em julgado dos processos referenciados na presente demanda, quais sejam, o processo no. XXXXX.XXXXXX/XXXX-XX (representação para inaptidão - evento 1, PROCADM5) e os autos de infração a ele vinculados de nº XXXXX.XXXXXX/XXXX-XX e XXXXX.XXXXXX/XXXX-XX (apuração da alegada interposição fraudulenta de terceiros em operações de comércio exterior - evento 1, PROCADM5 e, evento 47, OFIC1), para que as ora impetrantes possam exercer na amplitude seu direito constitucional de defesa, em respeito ao princípio do contraditório e ao devido processo do Direito. Condeno a União/Fazenda Nacional ao ressarcimento das custas judiciais recolhidas pela parte impetrante. Sem honorários, nos termos do art. 25 da Lei 12.016/2009.
Similar decisão foi proferida nos autos do processo nº: 1022462-14.2020.4.01.3800:
“No caso em análise, a medida não tem meramente caráter acautelatório, tal qual a apreensão de mercadorias, mas perfaz-se de verdadeira penalidade que resulta na impossibilidade de continuidade da atividade da empresa, antes que lhe seja permitido o exercício ao direito de defesa no âmbito de regular processo administrativo. (...) Desse modo, não havendo conclusão do processo administrativo ou encerramento das medidas de defesa do Impetrante, a previsão contida no art. 44 da IN RFB Nº 1863/2018, para além de extrapolar a função regulamentar, viola o princípio do devido processo legal previsto no art. 5º, LV da Constituição Federal. (...) Ante o exposto, concedo a segurança e, convertendo a tutela provisória em definitiva, determino que a autoridade se abstenha de promover a suspensão do CNPJ da Impetrante (XX.XXX.XXX/XXXX-XX) e de sua filial (XX.XXX.XXX/XXXX-XX), decorrente dos Processos Administrativos de nºs XXXXX.XXXXXX/XXXX-XX, XXXXX.XXXXXX/XXXX-XX, XXXXX.XXXXXX/XXXX-XX, XXXXX.XXXXXX/XXXX-XX, XXXXX.XXXXXX/XXXX-XX, XXXXX.XXXXXX/XXXX-XX [que apuram a prática de interposição fraudulenta de terceiros na modalidade presumida], devendo ser mantida ativa [sic] as referidas inscrições no CNPJ caso não haja óbice decorrente de procedimentos não mencionados na presente ação e até que seja proferida decisão administrativa definitiva o âmbito do processo administrativo.”
Fregonazzi, que foi um dos advogados que patrocinou ambos os processos afirma: “Decisões como essa revigoram a confiança no poder Judiciário, que não se esquiva de cumprir sua função constitucional de corrigir ilegalidades e abusos cometidos pelo poder executivo. Todos os empresários de comércio exterior que passarem por esta situação não apenas podem, como também devem, contar com profissionais especializados em direito aduaneiro para garantir que seus direitos sejam respeitados.”.
Artigo publicado originalmente no Jusbrasil.
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